Há
alguns anos encontrei em um blog* um bom artigo sobre Hermenêutica Bíblica,
onde o autor organizava sua exegese através de perguntas simples, que
realizadas durante o processo de interpretação, remetiam às principais regras de
uma hermenêutica sadia.
Bem,
agora, a vias de abordarmos este tão importante assunto no curso de Teologia
que estou lecionando na comunidade da qual faço parte, resolvi revisitar estas
questões e acabei por atualizar e editar esta sistemática simples. O resultado
segue abaixo e eu espero que seja útil para quem “tropeçar” neste espaço.
*
Infelizmente não lembro qual era o blog e não encontrei o mesmo novamente
quando pesquisei há alguns dias... então o autor original que me perdoe, mas
não vou poder dar o crédito...
Então,
sem mais delongas... Perguntas simples para lembrar das normas mais importantes
de interpretação bíblica:
1. Qual
é o estilo literário do texto?
Importantíssimo não confundir poesia e
narrativa. Na poesia o tema é mais importante do que as partes. Por sua vez, as
parábolas se organizam em torno de um assunto central. Estar ciente de que os provérbios
são ditados de sabedoria condensados em forma de sentenças curtas e não são promessas.
Lembrar que profecias podem conter um bom número de símbolos. Ex.: se tomarmos Cantares 2 como prosa
ao invés de poesia faremos grande confusão. Se não compreendermos que a
“Babilônia” da qual fala Apocalipse 18 é um símbolo para outro lugar podemos
ser levados a pensar que esta profecia já se cumpriu, pois a cidade de
Babilônia já não existe mais.
2.
Quem é que está falando?
Muitos personagens diferentes têm voz
ativa nas Escrituras: Deus, pessoas boas, pessoas más e até mesmo o Diabo. A
natureza da pessoa vai definir o grau de importância e o sentido do que foi
dito. Ex.: os amigos de Jó sem
dúvida falaram muitas coisas bonitas a respeito de Deus, do Universo e de como
a vida é. Entretanto, em nem tudo estavam corretos, pois no final Deus os
repreende por terem falado bobagens (Jó 42.7), então é necessário prestar
atenção naquilo que pode se admitir como verdadeiro em seus discursos.
3.
Para quem foi dirigida a mensagem?
Cada mensagem tinha um destinatário na
época em que foi declarada. Não confundir aplicação pessoal (o que Deus fala
com a gente quando lemos um texto) com revelação geral (doutrina para toda
Igreja). Prestar atenção ao período da dispensação na qual o texto se encontra.
Evitar a apropriação indébita de promessas feitas a outros. Ex.: a guarda do sábado foi um
mandamento instituído diretamente por Deus (Êx. 20.8), então tem o maior peso
que uma palavra poderia ter na Bíblia. Entretanto, este mandamento faz parte do
conjunto da aliança feita pelo Senhor com Israel e nada tem a ver com a Igreja,
instituída no NT. O fato de todos os Dez Mandamentos, com exceção do sábado,
serem repetidos no NT evidencia que esta norma específica não se aplica a nós
hoje.
4. Há
alguma palavra que mereça atenção especial no texto?
4.1 Figuras de linguagem:
Metáfora = comparação mental entre duas
coisas que ressalta a característica daquilo que é comparado dentro do contexto
do que se está dizendo. Ex.: “vós sois a luz do mundo” (Mt.
5.14); os crentes não são lâmpadas ambulantes, mas são testemunhas do
Evangelho;
Metonímia = troca um termo por outro que
tem relação de sentido. Ex.: “temos a redenção
pelo seu sangue” (Ef. 1.7); na verdade é pelo sacrifício de Cristo,
realizado na cruz, onde o sangue foi derramado, e não pelo sangue em si;
Sinédoque = o todo pela parte ou
vice-versa. Ex.: “o pão de cada dia
nos dá hoje” (Mt. 6.11); não significa apenas pão, mas o alimento de modo
geral;
Hipérbole = exagero para dar ênfase. Ex.: “se o teu olho direito te
escandalizar, arranca-o” (Mt. 5.29); claro que Jesus não estava ensinando que
devemos nos mutilar, mas sim romper radicalmente com tudo que nos leva a pecar;
Eufemismo = suavização no modo de dizer
algo. Ex.:“tendo dito isto,
adormeceu” (At. 7.60); na verdade ele morreu, mas “adormeceu” é um modo menos
direto de dizer isto;
Antropomorfismo = dá características
humanas a Deus ou a alguma coisa para se fazer entender. Ex.: “a mão do Senhor não está encolhida” (Is. 59.1); Deus é
espírito, então não tem corpo e nem mãos como as nossas, mas esta expressão nos
ajuda a entender sua ação;
Ironia = diz alguma coisa querendo
dizer o contrário, ridicularizar ou criticar. Ex.: “vai ver que conhece! Você já viveu tantos anos!” (Jó 38.21); na
verdade Deus estava confrontando Jó, fazendo ele lembrar que comparado ao Deus
eterno, Jó nada era;
Hebraísmos = maneiras típicas da
comunicação hebraica que são estranhas para nós, como por exemplo, a repetição
para dar ênfase ou aumentar o grau de algo, e uso de números para expressar
ideias de quantidade e não quantidades exatas. Ex.: no tabernáculo havia o “lugar santo” e o “lugar santo dos
santos”; este último era mais sagrado que o primeiro.
4.2 Palavras complicadas em
português:
Nunca deduza ou tente adivinhar o
significado de uma palavra se não a conhecer. Ex.: catadupa (catarata), escabelo (banco para colocar os pés), pragana
(sobra de grãos), ignomínia (grande desonra), anátema (maldito), etc.
4.3 Línguas originais:
Sempre que possível veja o significado
da palavra central do texto no original. Sinônimos podem ser usados
indistintamente, mas têm sentidos diferentes entre si que podem justificar o
uso de uma palavra ao invés de outra. Ex.:
o grego possui várias palavras para amor (eros, philos, ágape) mas o NT sempre
usa ágape para falar do amor divino porque representa o amor que se doa, o amor
incondicional e unilateral.
5.
Qual o contexto do que é dito?
Nenhum versículo pode ser tomado de
forma isolada. “Todo texto fora de contexto é pretexto para heresia”. O texto
anterior e posterior deve ser levado em conta, pois amplia o entendimento de um
trecho. O momento histórico em que o autor vivia é importantíssimo. A cultura
da sociedade no lugar e na época em que o texto foi escrito também. Ex.: muitos usam o trecho “E o Senhor
te porá por cabeça, e não por cauda” (Dt. 28.13) para alegar que o crente
será próspero. Todavia, esquecem que esta sentença está dentro de um contexto,
pois é parte de um discurso maior. A começar pelo próprio versículo percebemos
que esta promessa está vinculada ao cumprimento dos mandamentos (não só os 10
mandamentos) da Lei, então é uma promessa condicional. Nos versículos e
capítulos anteriores vemos que se trata de parte da aliança divina com Israel,
e nada tem a ver com a Igreja. Por fim, nos versículos seguintes encontramos o
“senão”. No caso do descumprimento dos mandamentos, castigos atingiriam o mesmo
povo para o qual havia sido prometido a bênção que é tão comumente apropriada
de modo indevido.
6. O
que a Bíblia fala sobre este assunto em outros lugares?
A Bíblia interpreta a si mesma e nunca
se contradiz. Todo texto sobre um assunto deve ser interpretado a partir da
perspectiva geral do que o restante da Bíblia diz fala sobre este assunto.
Sempre que encontrar um significado novo para um texto conferir a interpretação
própria com a interpretação já realizada por eruditos ortodoxos. Ex.: o relato de 1 Sm. 28 (onde Saul
foi consultar uma médium) costuma ser usado pelos espíritas para justificar
suas crenças. Entretanto, ao considerarmos a narrativa em relação ao que o
restante da Bíblia fala a respeito do assunto podemos perceber que as
Escrituras condenam esta prática e que o texto em questão não diz que Saul
tenha agido de modo correto, até pelo contrário.
É
isto. Abraço a todos.
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