terça-feira, 23 de janeiro de 2018

Perguntas para fazer boa Hermenêutica



Há alguns anos encontrei em um blog* um bom artigo sobre Hermenêutica Bíblica, onde o autor organizava sua exegese através de perguntas simples, que realizadas durante o processo de interpretação, remetiam às principais regras de uma hermenêutica sadia.

Bem, agora, a vias de abordarmos este tão importante assunto no curso de Teologia que estou lecionando na comunidade da qual faço parte, resolvi revisitar estas questões e acabei por atualizar e editar esta sistemática simples. O resultado segue abaixo e eu espero que seja útil para quem “tropeçar” neste espaço.

* Infelizmente não lembro qual era o blog e não encontrei o mesmo novamente quando pesquisei há alguns dias... então o autor original que me perdoe, mas não vou poder dar o crédito...

Então, sem mais delongas... Perguntas simples para lembrar das normas mais importantes de interpretação bíblica:


1. Qual é o estilo literário do texto?

         Importantíssimo não confundir poesia e narrativa. Na poesia o tema é mais importante do que as partes. Por sua vez, as parábolas se organizam em torno de um assunto central. Estar ciente de que os provérbios são ditados de sabedoria condensados em forma de sentenças curtas e não são promessas. Lembrar que profecias podem conter um bom número de símbolos. Ex.: se tomarmos Cantares 2 como prosa ao invés de poesia faremos grande confusão. Se não compreendermos que a “Babilônia” da qual fala Apocalipse 18 é um símbolo para outro lugar podemos ser levados a pensar que esta profecia já se cumpriu, pois a cidade de Babilônia já não existe mais.


2. Quem é que está falando?

         Muitos personagens diferentes têm voz ativa nas Escrituras: Deus, pessoas boas, pessoas más e até mesmo o Diabo. A natureza da pessoa vai definir o grau de importância e o sentido do que foi dito. Ex.: os amigos de Jó sem dúvida falaram muitas coisas bonitas a respeito de Deus, do Universo e de como a vida é. Entretanto, em nem tudo estavam corretos, pois no final Deus os repreende por terem falado bobagens (Jó 42.7), então é necessário prestar atenção naquilo que pode se admitir como verdadeiro em seus discursos.


3. Para quem foi dirigida a mensagem?

         Cada mensagem tinha um destinatário na época em que foi declarada. Não confundir aplicação pessoal (o que Deus fala com a gente quando lemos um texto) com revelação geral (doutrina para toda Igreja). Prestar atenção ao período da dispensação na qual o texto se encontra. Evitar a apropriação indébita de promessas feitas a outros. Ex.: a guarda do sábado foi um mandamento instituído diretamente por Deus (Êx. 20.8), então tem o maior peso que uma palavra poderia ter na Bíblia. Entretanto, este mandamento faz parte do conjunto da aliança feita pelo Senhor com Israel e nada tem a ver com a Igreja, instituída no NT. O fato de todos os Dez Mandamentos, com exceção do sábado, serem repetidos no NT evidencia que esta norma específica não se aplica a nós hoje.


4. Há alguma palavra que mereça atenção especial no texto?

            4.1 Figuras de linguagem:
         Metáfora = comparação mental entre duas coisas que ressalta a característica daquilo que é comparado dentro do contexto do que se está dizendo. Ex.: “vós sois a luz do mundo” (Mt. 5.14); os crentes não são lâmpadas ambulantes, mas são testemunhas do Evangelho;
         Metonímia = troca um termo por outro que tem relação de sentido. Ex.: “temos a redenção pelo seu sangue” (Ef. 1.7); na verdade é pelo sacrifício de Cristo, realizado na cruz, onde o sangue foi derramado, e não pelo sangue em si;
         Sinédoque = o todo pela parte ou vice-versa. Ex.: “o pão de cada dia nos dá hoje” (Mt. 6.11); não significa apenas pão, mas o alimento de modo geral;
         Hipérbole = exagero para dar ênfase. Ex.: “se o teu olho direito te escandalizar, arranca-o” (Mt. 5.29); claro que Jesus não estava ensinando que devemos nos mutilar, mas sim romper radicalmente com tudo que nos leva a pecar;
         Eufemismo = suavização no modo de dizer algo. Ex.:“tendo dito isto, adormeceu” (At. 7.60); na verdade ele morreu, mas “adormeceu” é um modo menos direto de dizer isto;
         Antropomorfismo = dá características humanas a Deus ou a alguma coisa para se fazer entender. Ex.: “a mão do Senhor não está encolhida” (Is. 59.1); Deus é espírito, então não tem corpo e nem mãos como as nossas, mas esta expressão nos ajuda a entender sua ação;
         Ironia = diz alguma coisa querendo dizer o contrário, ridicularizar ou criticar. Ex.: “vai ver que conhece! Você já viveu tantos anos!” (Jó 38.21); na verdade Deus estava confrontando Jó, fazendo ele lembrar que comparado ao Deus eterno, Jó nada era;
         Hebraísmos = maneiras típicas da comunicação hebraica que são estranhas para nós, como por exemplo, a repetição para dar ênfase ou aumentar o grau de algo, e uso de números para expressar ideias de quantidade e não quantidades exatas. Ex.: no tabernáculo havia o “lugar santo” e o “lugar santo dos santos”; este último era mais sagrado que o primeiro.

            4.2 Palavras complicadas em português:
         Nunca deduza ou tente adivinhar o significado de uma palavra se não a conhecer. Ex.: catadupa (catarata), escabelo (banco para colocar os pés), pragana (sobra de grãos), ignomínia (grande desonra), anátema (maldito), etc.

            4.3 Línguas originais:
         Sempre que possível veja o significado da palavra central do texto no original. Sinônimos podem ser usados indistintamente, mas têm sentidos diferentes entre si que podem justificar o uso de uma palavra ao invés de outra. Ex.: o grego possui várias palavras para amor (eros, philos, ágape) mas o NT sempre usa ágape para falar do amor divino porque representa o amor que se doa, o amor incondicional e unilateral.


5. Qual o contexto do que é dito?

         Nenhum versículo pode ser tomado de forma isolada. “Todo texto fora de contexto é pretexto para heresia”. O texto anterior e posterior deve ser levado em conta, pois amplia o entendimento de um trecho. O momento histórico em que o autor vivia é importantíssimo. A cultura da sociedade no lugar e na época em que o texto foi escrito também. Ex.: muitos usam o trecho “E o Senhor te porá por cabeça, e não por cauda” (Dt. 28.13) para alegar que o crente será próspero. Todavia, esquecem que esta sentença está dentro de um contexto, pois é parte de um discurso maior. A começar pelo próprio versículo percebemos que esta promessa está vinculada ao cumprimento dos mandamentos (não só os 10 mandamentos) da Lei, então é uma promessa condicional. Nos versículos e capítulos anteriores vemos que se trata de parte da aliança divina com Israel, e nada tem a ver com a Igreja. Por fim, nos versículos seguintes encontramos o “senão”. No caso do descumprimento dos mandamentos, castigos atingiriam o mesmo povo para o qual havia sido prometido a bênção que é tão comumente apropriada de modo indevido. 


6. O que a Bíblia fala sobre este assunto em outros lugares?

         A Bíblia interpreta a si mesma e nunca se contradiz. Todo texto sobre um assunto deve ser interpretado a partir da perspectiva geral do que o restante da Bíblia diz fala sobre este assunto. Sempre que encontrar um significado novo para um texto conferir a interpretação própria com a interpretação já realizada por eruditos ortodoxos. Ex.: o relato de 1 Sm. 28 (onde Saul foi consultar uma médium) costuma ser usado pelos espíritas para justificar suas crenças. Entretanto, ao considerarmos a narrativa em relação ao que o restante da Bíblia fala a respeito do assunto podemos perceber que as Escrituras condenam esta prática e que o texto em questão não diz que Saul tenha agido de modo correto, até pelo contrário.

É isto. Abraço a todos.

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